Monsenhor Tang, o bispo da discórdia entre a China católica e a Santa Sé
No início dos anos 1980, as tensões entre Vaticano e chineses católicos pareciam começar a desanuviar, mas a nomeação de monsenhor Tang para arcebispo de Cantão provocou nova crise que foi acompanhada com preocupação pelos diplomatas portugueses no Vaticano.
Nos últimos 40 anos, a história da diplomacia Portugal-China cruza-se frequentemente com outros estados, entre os quais a Santa Sé, com quem os chineses católicos mantinham uma relação difícil.
No início da década de 80, as tensões pareciam começar a desanuviar, mas a nomeação de monsenhor Tang para arcebispo de Cantão provocou nova crise que foi acompanhada com preocupação pelos diplomatas portugueses no Vaticano.
"Não há dúvida que as relações da Santa Sé com a China atravessam neste momento uma grave crise", escrevia o embaixador Gonçalo Caldeira Coelho ao então ministro dos Negócios Estrangeiros, André Gonçalves Pereira, em agosto de 1981, de acordo com documentos disponíveis no Arquivo Histórico-Diplomático.
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O Vaticano mantinha relações diplomáticas com Taiwan (sendo ainda hoje um dos 17 estados que reconhecem o território que a República Popular da China reivindica como seu), impossibilitando as conversações com Pequim.
O diplomata sugeria, por isso, que a crise estaria a ser "alimentada pela embaixada da República da China (Formosa) acreditada no Vaticano" que estaria a desenvolver "uma intensa atividade de intriga entre a Santa Sé e os católicos chineses" dando eco às informações recebidas através do seu conselheiro eclesiástico, monsenhor Manuel Cardoso de Carvalho.
"Certos ambientes (...) divulgaram a suspeita de que a grande responsabilidade do fracasso da nomeação do monsenhor Tang pela Santa Sé se deve à Formosa e até a alguns dos seus ambientes católicos. Teriam encarado como um perigo para o futuro da Formosa a aproximação do Vaticano e da China Popular, feita através do monsenhor Tang e para comprometerem as coisas teriam dado grande publicidade à nomeação da Santa Sé, ferindo assim a sensibilidade dos chineses que preferiam uma solução mais prática, mas sem reconhecimento oficial", descrevia o conselheiro.
A nomeação de monsenhor Tang, em junho desse ano, para arcebispo residencial de Cantão, por parte do Vaticano, tinha motivado uma reação "negativa e hostil" por parte da China, ao contrário do que era esperado, já que os católicos chineses da Associação Patriótica o tinham designado para o mesmo cargo alguns meses antes.
"A Santa Sé deixou passar cerca de oito meses após a eleição feita pela Associação Patriótica para proceder a esta nomeação. Mesmo assim, e apesar da simpatia que monsenhor Tang tem na China, a Associação Patriótica não deixou de fazer os seus protestos" com o bispo da Igreja nacional a classificar a nomeação como "ilegal" e a acusar o monsenhor de "atividades prejudicais para dignidade do clero e do povo chinês", constata Cardoso de Carvalho.
Numa extensa nota informativa de 18 páginas, datada de 22 de junho de 1981, o conselheiro eclesiástico expressa as suas inquietações quanto à situação dos católicos na China e nota que "os acontecimentos recentes mostram que o governo chinês continua a querer a igreja chinesa separada de Roma e por ele controlada".
Descrevendo o contexto dos últimos 30 anos, o prelado explica que o governo comunista chinês promoveu a criação de associações denominadas patrióticas, "com o objetivo de submeter as diversas confissões religiosas, sendo a Igreja católica, que contava cerca de 3 milhões de fiéis, "a primeira a ser repetidamente atacada".
Prepara-se então "a criação de uma igreja nacional, usando sacerdotes e leigos que cedendo a reeducação ideológica, enganos, pressões, ameaça das armas e atrativos de toda a ordem, se prestaram a aceitar e dar vida às chamadas associações nacionais dos católicos patriotas da China, completamente controladas pelo Governo".
A Associação Nacional patriótica dos católicos na China é fundada em agosto de 1957 preparando o caminho para separar os católicos chineses da igreja de Roma. "Montou-se uma propaganda contra toda a ligação com a Santa Sé, classificam-se os documentos pontifícios de reacionários com ordens erróneas e inaceitáveis, sendo o Vaticano acusado de imperialismo", critica o monsenhor. Com a criação da Associação Patriótica "e, de modo especial, com a irregular eleição e sagração de bispos", a partir de 1957 "consumava-se um cisma" que a Santa Sé acompanha "com preocupação.
Pio II relembra aos bispos e sacerdotes da China que o poder de jurisdição competia aos bispos "mas só em União com o Papa, sucessor de Pedro" e questiona "os graves atentados contra a disciplina e a unidade da Igreja, devido à ordenação de bispos contra as disposições da Santa Sé". O pontificado do seu sucessor, João XXIII, produz alguma acalmia, ainda que o papa tenha manifestado "publicamente a sua preocupação pela situação dos católicos chineses". Paulo VI, que lhe sucede em 1963, "aproveita todas as oportunidades para tentar contactos com a China esclarecendo que os católicos têm obrigação de amar a sua pátria e de lhe ser fiéis".
João Paulo II (que ocupava a cadeira pontifícia em 1981) encontra-se com alguns católicos chineses numa viagem às Filipinas e a política de abertura e liberalização da China parece atingir também as minorias e confissões religiosas.
A maior parte dos fiéis e sacerdotes católicos são postos em liberdade, entre os quais o monsenhor Dominic Tang, que esteve preso 22 anos, e diversas igrejas foram reabertas ao culto, indicando uma tolerância, no entanto, "ainda controlada pelo governo".
Tang, nascido em Hong Kong, era uma figura conhecida da diocese de Macau, onde tinha estudado num colégio jesuíta, e falava correntemente português.
Segundo o conselheiro eclesiástico teria sido o próprio governo regional a propor à Associação Patriótica a reintegração do monsenhor como bispo de Cantão, mostrando "uma certa abertura para com os católicos não ligados" aquela organização.
Perante as contradições chinesas às quais só "o futuro dará resposta", Cardoso de Carvalho contrapõe a ponderação do Vaticano que "tem guardado silêncio" face à polémica. No entanto, nota que, ao nomear Tang, "a Santa Sé afirma o seu direito, próprio e exclusivo, de nomear o bispo de uma diocese e de lhe dar a instituição canónica, não reconhecendo qualquer valor à eleição feita pela Associação Patriótica".
Face a este novo obstáculo ao diálogo "sempre delicado e difícil" entre a Santa Sé a China, o conselheiro eclesiástico evoca o monsenhor Tang no final do seu relato: "é preciso não ter pressa; o problema vem já de longe e é necessário ter, de uma parte e da outra, muito boa vontade".
Foi preciso chegar a 2018 para que a China e o Vaticano, que não têm relações diplomáticas desde 1951, assinaram um acordo histórico sobre a nomeação dos bispos. Em setembro do ano passado, o papa Francisco reconheceu oito bispos, sete deles ainda vivos, nomeados pela China e que até agora não eram admitidos "de forma oficial" pelo Vaticano.
Os laços diplomáticos entre a China e o Vaticano foram interrompidos após a excomunhão por parte de Pio XII de dois bispos designados por Pequim, facto ao qual as autoridades chinesas responderam com a expulsão do núncio apostólico, que se estabeleceu na ilha de Taiwan.
A China, por sua vez, não reconhece o papa e tem a sua própria Igreja Católica Patriótica desde 1949, quando Mao Tsé-tung estabeleceu a República Popular da China.
Os dois estados reaproximaram-se no pontificado de Francisco, expressando em várias ocasiões o seu empenho na melhoria do relacionamento.
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