Ser humano acima da lei: as espigas arrancadas no dia de
sábado
Jesus de Nazaré estava sendo vigiado rigorosamente pelas
autoridades, pois como vimos anteriormente, suas práticas e interpretações das
leis e costumes, estavam ameaçando os fundamentos do próprio sistema que “os
cidadãos do bem” protegiam com zelo extremo. No episódio em que ele opinou
sobre a tradicional prática de jejum (cf. Mc 2,18-22) o rabino Jesus realçou a
radical novidade das mudanças que ele introduzia na realidade humana com duas
metáforas. A primeira falava de remendo novo na roupa velha que só pioraria o
rasgo, e a segunda referia ao vinho novo no casco velho o que fazia com que a
gente perdesse ambos, quer dizer, o vinho e casco.
1. No episódio que nós vamos examinar hoje, trata-se de
espigas arrancadas no dia de sábado (cf. Mc 2,23-28). Aconteceu o seguinte: num
sábado Jesus e seus discípulos passavam por uma plantação. Os discípulos
começaram abrir o caminho arrancando as espigas. Mas, os guardiões de bons
costumes prontamente criticaram o que os discípulos de rabino Jesus estavam
fazendo; arrancar espigas não era permitido neste dia; era uma das trinta e
nove as atividades proibidas pela lei no dia de sábado.
Para rebater essa critica Jesus recorre a Sagrada Escritura
e retoma a interpretação original do sentido de sábado. Contudo, na origem da
observância da lei do sábado estava a preocupação de assegurar o bem-estar de todo
ser humano (cf. Dt 5,12-15), quer dizer, a lei procurava evitar que se imite no
Israel a escravidão do Egito. Lá no Egito os israelitas foram escravos e
trabalharam o tempo todo sem nenhuma provisão para descanso ou qualquer outra
providência de bem-estar! Jesus também chama atenção dos seus críticos ao que
Davi, o rei ideal, fez durante sua fuga diante da ira do rei Saul: comer os
pães reservados só para os sacerdotes diante de impossibilidade de obter os
pães comuns para si e seus companheiros (cf. 1Sm 21,1-7).
De tudo isso o
Nazareno evidencia que o sábado foi feito para melhorar as condições da vida do
ser humano e por isso mesmo ele não pode ser sacrificado para garantir a
meticulosa observância da lei. Mais importante ainda, “o filho do homem” (um
título usado aqui no sentido de linguagem popular que significa “a gente”) tem
poder sobre o sábado. Isto significa que todos nós somos responsáveis pela
interpretação e aplicação das leis em cada situação, levando em conta todos os
seus elementos constitutivos, mas lembrando-se de que o bem do ser humano é o
que tem prioridade.
2. O paralelo deste texto no Evangelho de Mateus (Mt 12,1-8)
tem alguns detalhes modificadas: os discípulos que estavam com fome começaram a
arrancar espigas e comê-las. No ponto de vista dos fariseus os discípulos de
Jesus cometeriam duas infrações da lei, pois: (1) eles se apossaram do que não
era seu (arrancar as espigas que não pertenciam a eles); e (2) de debulhá-las
antes de comer, o que era proibido pela lei no dia de sábado!
Aqui também Jesus do que Davi e seus companheiros fizeram diante
de fome durante sua fuga da ira do rei Saul. Mais ainda, o Nazareno refere à
prática no Templo, no seu tempo, dos sacerdotes que realizavam suas funções com
atividades proibidas pela lei do sábado, mas sem sofrer as sanções da lei por
isso. Igualmente, Jesus desafia os guardiões dos bons costumes para entender o
significado de: “Quero misericórdia e não sacrifício” e pediu para não condenar
inocentes e necessitados. Isto, sem deixar de afirmar: “Porque o Filho do Homem
é senhor do sábado”.
3. No Evangelho de Lucas o episódio é narrado em poucas
palavras (cf. Lc 6,1-5). Mas, os detalhes necessários estão aí: passagem pelo
campo; os discípulos arrancarem as espigas e debulhá-las antes comer; a
reclamação dos fariseus e a reposta de Jesus recorrendo às escrituras para
fundamentar sua atualizada interpretação da lei que visa o bem do ser humano
sofrido. A responsabilidade do Filho do Homem (todo ser humano) realizar tal
interpretação e aplicação da lei nas múltiplas situações que necessitam
misericórdia, e discernimento para encontrar soluções.
4. O que Jesus fez gerou forte contestação, uma vez que sua
interpretação da lei ameaçava as bases da ordem social que privilegiava as
elites. Aqui no Brasil, vivemos um momento de contestação feroz das medidas que
visavam igualitarismo que o governo legítimo, que foi substituído no ano 2016,
vinha realizando. No período preparativo deste equívoco histórico criminoso e
ainda no período pós-golpe, a sociedade brasileira vive um surto singular de
hipocrisia. O intrigante é que uma boa parte da população ainda está em
sintonia com a interpretação que Jesus fez da lei do sábado: as leis servem
para promover o bem-estar de todos os cidadãos… mesmo diante do comportamento
tendencioso do judiciário, legislativo, executivo e também da imprensa
tradicional que favorecem só as elites, e procuram criminalizar a camada mais
necessitada da população brasileira e suas lideranças, atrás de uma fachada
hipócrita de combater a corrupção...
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