
“A santa para as mulheres espancadas, traídas”:
Um estudo sobre a devoção a Isabel Maria da Conceição em Guaraciaba do
Norte, Ceará.
Michelle Ferreira Maia1
Eis que se nota o vulto de Isabel Maria da Conceição: de mãos postas e cruzadas
segurando com precisão o terço, deixando entrever pelas contas das ave-marias que uma
oração é anunciada, prece esta que é tecida em silêncio, pois sua boca está contidamente
fechada. Seria a suplicante ou a suplicada?
“Rogai por nós que recorremos a vós”.
A imagem é quase fantasmagórica,
respeitando a ilusão ou a fronteira que separa
o seu pertencimento entre o aquém e o além
da vida.
Finalmente que cor poderia possuir
ou se apresentar uma alma do outro mundo?
De fato, compõe-se de uma “[...] realidade
ausente que pretende representar”2
.
Os contornos do corpo estão restringidos pelo dorso, colo e pescoço. A magreza da
carne é coberta pela blusa azul celeste que propõe um ser frágil e indefeso. Sua veste cumpre
com exatidão o dever de expor uma senhora casada, de tal modo que suas “vergonhas”
estejam guardadas.
1 Doutoranda em História pela Universidade Federal da Grande Dourados, Mato Grosso do Sul, Bolsista CAPES,
e está sob a orientação da Profª. Drª. Graciela Chamorro. email: michellefmaia@hotmail.com.
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GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo.
Companhia das Letras, 2001. p. 85.
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Seus olhos contemplativos estão a presumir certa tristeza, melancolia e pesar, mas no
fim também incita a esperança. E o que falar do curto cabelo? Vitimado pelo insano ciúme ou
cúmplice e culpado de um crime, da morte, do fim de Isabel Maria da Conceição.
As árvores, ao redor da mulher, completam o cenário. E podem suscitar, ao olhar de
estrangeiro, a representação apenas de um lugar bucólico. Entretanto, exibe aos apreciadores e
devotos a mulher campestre que morreu entre a mata verde, e que teve seu cadáver salvo do
precipício graças às árvores que o seguraram impedindo a queda e com isso o
desaparecimento da prova do homicídio: o corpo espancado, esfaqueado e humilhado pelo
agressor.
Na parte inferior, lê-se a: “Mártir de Guaraciaba do Norte”. Esta frase denuncia
que, em torno da simplória mulher Isabel Maria da Conceição vislumbrada pela imponente e
grandiosa pintura emoldurada, foi construída e propagada por outra faceta, ou seja, pela sua
representação de concessora, de santa popular. De acordo com Milliet: “Ninguém nasce
herói. Eis a Síntese, a reviravolta da história: o culpado torna-se vítima, o condenado, mártir.
Cumpre verificar o nexo que norteia a criação do herói”. Milliet (2001. p. 11-14).
Salientando estas considerações, a ótica do olhar é direcionada para a constatação de
que devemos compreender a pintura, seja sua posição e seus adornos e aparatos como uma
fabricação mediada e reverenciada, corporificada pelo tempo e pelos sentidos simbólicos do
presente. Concordo com Milliet (2001. p. 132) quando sugere que
Uma pintura pode ser tão relevante quanto um artigo de jornal, uma estátua tão
ou mais reveladora que um poema, porque o mito, em sua ânsia de comunicação, não
discrimina os meios, usando tanto a palavra quanto a imagem em diferentes suportes. Com
habilidade perversa, o mito desloca-se da história.
Ambos, as memórias e sentidos simbólicos do presente estão condicionados por
vários interesses que vão além da propagação dos milagres e graças alcançados pelos fiéis da
santa. É necessário, desse modo, compreender esta imagem por dois viés: entre o real (a
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mulher) e o imaginário (a santa). A construção da imagem de Isabel Maria da Conceição
propõe a busca pelos sentidos da própria criação de sua “santidade”.
Isabel Maria da Conceição nasceu em 1901, em Guaraciaba do Norte3
, Ceará. Pouco
se fala sobre sua trajetória, quem eram seus pais, ou sobre seu cotidiano seja o de filha, de
esposa ou de mãe. Podemos acrescentar que a biografia de Isabel Maria da Conceição está
sempre apresentada pela morte.
Aos 28 anos, vítima pelo ciúme de seu esposo, que teria ficado contrariado ao vê-la
de cabelo cortado: “A crença de que Isabel é santa nasceu logo depois de sua morte. Aos 28
anos, ela foi espancada e morta pelo marido, conhecido como Zé Passarinho, que tinha ciúmes
de sua beleza. (FOLHA.com. “Cotidiano”, 8/3/2003)”.
A compreensão da morte violenta e prematura é acrescida com o fim dado ao
cadáver pelo agressor: “Depois, ela foi jogada por ele em um penhasco, mas seu corpo teria
ficado preso em uma árvore, que, segundo a crença popular, continuaria intacta até hoje.
(FOLHA.com. “Cotidiano”, 8/3/2003)”.
Houve outros momentos de discórdia entre o casal motivado pelo ciúme? Podemos
compreender que se trata de um crime em defesa da honra? Ou seria um homicídio passional?
Quem foram às testemunhas? A Isabel Maria da Conceição teria sido concedida o direito a
defesa? O que aconteceu com o réu “Zé Passarinho” após o ocorrido? Qual sua sentença ou
penitência? Quem ou quais pessoas teriam retirado o corpo do penhasco?
Perguntas que põe a questão do (re) corte das memórias. De acordo com Samuel
(1997, p. 42):
a memória é historicamente condicionada, mudando de cor e forma de acordo
com o que emerge no momento; de modo que, longe de ser transmitida pelo modo
intemporal da ‘tradição’, ela é progressivamente alterada de geração em geração. Ela
porta a marca da experiência, por maiores mediações que esta tenha sofrido. Tem,
estampadas, as paixões dominantes em seu tempo. Como a história, a memória é
3 Guaraciaba do Norte está localizada a 299 km de Fortaleza, que se ergue a uma altitude de 902,40 m. É sede de
um município com 534,72 km² em cujo território vive um total de 37 777 habitantes (densidade demográfica:
61,78 hab./km²). Dados retirados do site: http://pt.wikipedia.org/wiki/Guaraciaba_do_Norte.
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inerentemente revisionista, e nunca é tão camaleônica como quando parece permanecer
igual.
As pessoas resignam-se a narrar e contar o “cruel” ato: o assassinato. As lembranças
enfocam e deixam entrever as questões relacionadas ao que antecedeu a morte. De um lado, o
sentido de pertença do corpo de Isabel Maria da Conceição, todo ele de propriedade do seu
cônjuge. Dono e seu senhor, ao qual lhe devia obediência, reverência, respeito, e
principalmente a sua “beleza”. Teria Isabel Maria da Conceição desacatado o código de
postura das Santas mães?4
A vítima é agredida fisicamente “espancada” e “esfaqueada”, o corpo que antes era
objeto de desejo e posse, agora é alvo da ira, por ter incitado a desconfiança de uma possível
traição ou por simplesmente despertar o interesse dos olhares de outros. A violência ainda é
pública e verbal. Assim o corpo, a moral e a honra de uma senhora casada foram manchados,
maculados tanto pelas infâmias quanto pelo sangue arrebatado pela peixeira de “Zé
Passarinho”.
Teria o infrator premeditado à cena do crime? Afinal, próximo ao despenhadeiro, o
lugar parece propicio para o desaparecimento do corpo, ao ser jogado, o ato seria apagado. O
Sumiço seria sentido pelos vizinhos, familiares, amigos, mas sem o conhecimento do
assassinato.
E foi no espaço que intencionou o assassino ser o do esquecimento do corpo, que foi
construído o lugar em que a alma de Isabel Maria da Conceição passou a ser lembrada e
celebrada. Segundo, Certeau (1994, p. 189 – 190):
Os lugares são histórias fragmentárias e isoladas em si, dos passados roubados
à legitimidade por outro, tempos empilhados que podem se desdobrar mas que estão ali
antes como histórias à espera e permanecem no estado de quebra-cabeças, enigmas, enfim,
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De acordo com Mary Del Priore: “As Santas Mães seriam consideradas as mulheres que obedeciam as leis de
Deus, do Estado e da Igreja e do marido: “cuidar da casa, cozinhar, lavar a roupa, servir ao chefe da família com
o seu sexo, dando-lhe filhos que assegurassem a sua descendência e servindo como modelo para a sociedade
familiar com que sonhava a Igreja”. DEL PRIORE, Mary. Mentalidades e práticas em torno do parto. In: Ao sul
do corpo: condição feminina, maternidade e mentalidades no Brasil Colônia. 2. ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1995. p. 29.
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simbolizações enquistadas na dor ou no prazer do corpo [...] é uma prática do espaço este
bem-estar tranqüilo sobre a linguagem onde se traça, um instante, como um clarão.
A falecida tornou-se região e nos meios nacionais de divulgação a “santa para as
mulheres espancadas, traídas”:
Moradores de um município do interior do Ceará veneram uma santa popular,
protetora das mulheres traídas e espancadas. O culto à Isabel Maria da Conceição,
conhecida como finada Isabel, é feito numa pequena capela na beira da estrada que liga
Guaraciaba do Norte a Reriutaba, na serra da Ibiapaba, a 350 km de Fortaleza, local onde
ela teria sido morta pelo marido, em 1929.
A memória sobre Isabel e sua vida e morte seguiu o curso dos seus construtores, que
sempre (re) elaboram os fatos que a tornaram a “Mártir de Guaraciaba do Norte”. O Corpo
da mulher exposto na pintura e nas narrativas dos jornais foi destituído de qualquer pecado,
sexualidade e dos prazeres deste mundo, agora a ostentação é a da imagem da santa. Ramos
(1998), ao discutir acerca do corpo e sexualidade do Padre Cícero no imaginário dos devotos,
observa que o santo é imperecível, dotado de um corpo não pecador, que na vida terrena não
se rendeu às tentações. Essa interpretação sobre o santo é construída, porque, segundo Ramos
(1998, p. 57):
o que importa para os limites da presente abordagem (sobre os devotos) não é o
‘resgate’ do real e sim o imaginário social que constrói a realidade de uma determinada
forma. A biografia oficial do Pe. Cícero não seduz, não se origina da fé nem lhe dá força.
A consistência do Pe. Cícero é criação e criadora do prodigioso mundo da fé sertaneja.
Antes apenas uma cruz e ex-votos demarcavam o local reservado à santa popular e à
devoção a ela direcionada. Hoje, vê-se uma capela organizada e exuberantemente construída.
A pintura descrita anteriormente situa-se como um altar que está posicionado no interior da
Capela que foi destinada como o “lugar de oração a Isabel”. O retrato está depositado de
frente para os visitantes.
Interessante pontuar que a estrutura da capela foi construída no sentido abismoestrada, sendo que a pintura está de costas para o abismo da serra de Reriutaba. Ainda sobre a
imagem, esta não apresenta: a data de nascimento ou morte da falecida, o nome do pintor, e
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nem a data de fabricação da tela. Contudo, ainda no altar, outra imagem exposta ao lado da
anterior nos é apresentado os “benfeitores”:
Arquivo Pessoal da autora. Fotografada no dia 20 de Julho de 2011.
A descrição é enfática: “Monumento à Isabel Maria da Conceição”. A concepção de
monumento aqui adotada nos faz pensar que
De fato, o que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado,
mas uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento do
mundo e da humanidade, quer pelos que se dedicam à ciência do passado e do
tempo que passa, os historiadores. Estes materiais da memória podem apresentar-se
sob duas formas principais: os monumentos, herança do passado, e os documentos,
escolha do historiador. (LE GOFF, 2003, p. 525).
Analisar o processo de transformação da cruz em capela nos permite realizar as
seguintes indagações: Quando e por que ocorre essa modificação? Qual a perspectiva e
repercussão desta construção do ponto de vista dos devotos?
Porque seria a “União dos Conterrâneos e amigos de Guaraciaba do Norte” e do
“Instituto de Desenvolvimento Sócio-Econômico Cultural de Reriutaba” os responsáveis pela
iniciativa da reforma? Esperava-se que poderia ter sido uma mudança impulsionada por uma
associação religiosa.
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Embaixo da moldura, precisamente no lado inferior esquerdo, nota-se o nome do
Professor Teodoro Soares, atualmente ocupando umas das cadeiras de Deputado Estadual na
Assembléia Legislativa de Fortaleza. De fato, uma imagem da religiosidade popular que
também foi apropriada pelo poder:
O deputado Professor Teodoro autorizou que fosse feito um levantamento da atual
situação da Capela e se comprometeu a dar alguma contribuição. Vale ressaltar que o
deputado Professor Teodoro foi o responsável pela construção da capelinha da “finada
Isabel”, local de romaria na descida de Guaraciaba para Reriutaba (Jornal Correio da
Semana, 29/12/ 2009, p.1).
A Capela beneficiou os devotos, o recinto está distribuído entre o altar, a parte de pôr
os ex-votos, e ainda se vêem bancos de cimento para que os fiéis façam suas preces e seus
agradecimentos sentados se assim o aspirar, abrigados do sol ou da chuva. É possível perceber
que no lugar foi construída uma ordem, a imponência do espaço impõe o abrigo maior da
devoção a Isabel, quem passa pela serra tem a atenção atraída pela capela que se impõe aos
carros e ao abismo. A presença de visitantes à Capela é sempre significativa, principalmente
mulheres.
Arquivo Pessoal da autora. Fotografada no dia 20 de Julho de 2011.
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Isabel Maria da Conceição tem seu retrato e folhetos sobre seus milagres
distribuídos pela cidade, e sua vida e morte cantadas em versos falados e escritos:
A história da morte de Isabel é narrada em uma oração distribuída aos 30 mil
habitantes de Guaraciaba do Norte há dois anos, em homenagem ao centenário do
nascimento dela. "Valei-me, na vossa condição de protetora que fostes escolhida pelas
esposas espancadas e mulheres traídas, na minha aflição, alcançando-me a graça de que
tanto necessito", diz um trecho da oração (FOLHA.com, 8/3/2003).
Muitos costumam se dirigir a Isabel Maria em momentos difíceis pedindo sua
proteção. Quando a terra não oferece alento, o céu se reveste de brandura e calmaria,
apontando possibilidades dos poderes dos santos e de Deus. E o povo clama ao santo de sua
estima, buscando apoio, confessando sua confiança no sagrado. A promessa é feita com o
santo que concedeu, anteriormente, uma graça a alguém. Os milagres são a apresentação do
poder do santo5
.
E várias são as formas de agradecimento: as pessoas costumam fazer caminhadas até
o local onde ela morreu, mandam celebrar missas, dão o nome dela às filhas, como é o caso de
Télia Bandeira Vale6
, nascida em Reriutaba, que tem uma filha com o nome de Isabel, devido
a uma graça alcançada no momento de um acidente quando estava grávida.
As possibilidades da escrita dessa história são diversas: muitas falácias, mas silêncios
em torno do crime são uma constante. Além disso, é necessário apontar que Isabel Maria da
Conceição não foi a única mulher assassinada pelo marido, entretanto, porque fora a única a
ser alvo de devoção e comoção?
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O poder do santo é vislumbrado pelo milagre e principalmente como este é visto e interpretado pela sociedade
que o assiste, como adverte Régis Lopes Ramos: “A crença, portanto, possui uma fundamentação no que é visto,
ou melhor, na forma pela qual certos acontecimentos são percebidos”. RAMOS, Francisco Régis Lopes. O
verbo encantado: a construção do Pe. Cícero no imaginário dos devotos. Ijuí: Unijuì, 1998. p. 25.
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VALE, Télia Bandeira. Doméstica, casada, 45 anos. Residente na Rua Mons. Eurico, s.n. Centro, Guaraciaba,
Ceará. Entrevista realizada no dia 20 de julho de 2011.
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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira
Alves. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 189-190.
GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. Trad. Eduardo
Brandão. São Paulo. Companhia das Letras, 2001. p. 85.
LE GOFF, Jaques. Documento/Monumento. In: História e memória. Trad. Bernado Leitão.
5. ed. Campinas: Ed. Unicamp, 2003. p. 525.
MILLIET, Maria Alice. Tiradentes: O corpo do Herói. São Paulo. Martins Fontes, 2001. p.
11-14.
DEL PRIORE, Mary. Mentalidades e práticas em torno do parto. In: Ao sul do corpo:
condição feminina, maternidade e mentalidades no Brasil Colônia. 2. ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1995. p. 29.
RAMOS, Francisco Régis Lopes. O verbo encantado: a construção do Pe. Cícero no
imaginário dos devotos. Ijuí: Unijuì, 1998. p. 57.
SAMUEL, Raphael. Teatros da memória. Projeto História, São Paulo, n. 14, fev. 1997. p.
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